Terra, a nossa galinha

TERRA, A NOSSA GALINHA

(*) Mhanoel Mendes

Aqui, onde vivemos, a gente, literalmente, dá nome aos bois. Tem o sapo Godofredo, o tico-tico Tico, as cachorras Dama e Loba, o galo GaloDério. Temos até a galinha cujo nome é Terra.
A gente tem um acordo com a Terra: nós cuidamos dela, a protegendo dos predadores, oferecemos alimento, e, em troca, ela nos oferece ovos, pena e estrume, que se transforma em esterco, que vira batata, alface, couve, repolho…
Desde que chegamos aqui, asseguramos que a galinha siga sua sina natural de nascer, crescer, viver e morrer sem que este ciclo seja interrompido. Aqui, ela vai morrer quando é hora disso acontecer. Não tem de 28 ou 42 dias contados em confinamento, por exemplo.

Nós vivemos em harmonia com a Terra e ela conosco. Terra cisca o dia inteiro, feliz da vida em seu espaço e sempre canta quando oferece um presente à nossa pra família. E somos muito gratos por isso, tanto que nunca falta água e comida. Terra é diferente porque é amada, respeitada e, em contrapartida, ela oferece só fartura.
Um dia, meus cabelos embranqueceram, momentos antes de irem ao vento. E este modo de vida foi questionado pelos que vieram depois de mim. Ignorantes, não se harmonizaram com a Terra. Pelo contrário. Disseram que ela só dá despesa, só faz sujeira e que Terra não serve pra nada. Não perceberam a importância dela. Tanto que colocaram veneno dentro do galinheiro pra matar ratos, que deixaram de embelezar o lar da Terra; até fogo atearam ao redor do galinheiro, onde antes era mato.
Um dia, num tempo triste e fora do tempo, os que me sucederam, foram no galinheiro. Neste dia que marcou o início da desarmonia do todo, sem nenhum reconhecimento, sem nenhuma gratidão, acabaram com aquele ser; mataram a Terra. E gelidamente a consumiram, ou seja, “sumiram com”.
Assim, no dia seguinte, não havia mais pena para fazer fronha e peneiro. Não havia mais esterco, que transportado pra horta e pra roça, se transformavam em alface, repolho, batata, aipim, cenoura, beterraba… Não havia mais ovos; não tinha mais pão! Não tinha mais o canto da Terra; fez-se o silêncio.
No segundo dia, os que vieram depois dos que me sucederam, viveram tempos difíceis, sem produto para fronhas, peneiros, sem esterco e sem ovos. Depois do silêncio, veio a miséria anunciada, a vida trágica prevista, a tristeza medular. O caos sem perspectiva, fez alguém contemplar.
Foi quando um desses de mim, que veio depois de mim, lembrou do que se fazia antes, de como tudo era harmonioso e perfeito. Lembrou do quanto tudo era simples e feliz antes de embranquecer o cabelo daquele que veio antes dele. E aspirou: puxa, se tiver uma galinha, ela pode oferecer pena pra fazermos travesseiros e peneiro, ovos para nos alimentarmos e ainda estrume, que vai virar esterco, que na roça e na horta vai virar alimento.
E em um lampejo genético, este “eu” futuro sugere um nome para esta galinha que vai começar a criar: Terra.
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(*) Mhanoel Mendes | Permacultor, Psicólogo e Peregrino, dentre outros papéis (mhanoel@oikos.org.br / www.oikos.org.br)

 

 

 

 

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